O Vencedor
Capítulo 4
Eu,
sinceramente, tinha conseguido esquece-lo. Sério. Parei pra pensar e me dei
conta de que desde que tinha chegado ao caixa do mercado até o segundo em que o
discerni, eu não tinha pensando em Maurício. Nem nele, nem em toda a tristeza
que me causava. Mas lá estava ele como se soubesse, como se, tendo podido
prever o suspiro de paz da minha consciência, tivesse resolvido vir, em pessoa,
cuidar de não me deixar aproveitá-lo.
Empurrei
o carrinho, que não estava pesado, por uma distância, que não era longa, e me
senti como em via crucis, não. Alguém
como eu não merece um exemplo tão justo. Sei lá, senti como quando a gente anda
num desses brinquedos infernais de parque, desses que despencam de muito alto
em três segundos que mais parecem a eternidade.
Eu
sabia que meu olhar lhe queimava a nuca, tinha certeza que já me tinha notado,
mas ele não virou para trás. Antes, permaneceu maurício, altivo, soberbo, achando que era a pintura a óleo de
algum rei muito glorioso.
Parei
o carrinho ao lado do carro e não falei nada. Fiquei fingindo me entreter com
as sacolas, chacoalhando-as, fazendo bastante barulho, pra dar a ele a escusa
que precisava pra olhar. Até nisso eu sabia que tinha que servi-lo. Tinha
sempre de construir a escada pra que ele descesse até mim, estender o tapete.
O
vi se virar pelo canto do olho. A mala do carro se abriu. Tomei umas sacolas e
deixei outras, queria ver o que ele faria. Se as pegasse, mostraria que não era
de todo bicho, que, pelo menos, polidez tinha. Se não pegasse, no entanto, a
minha humilhação seria ainda maior com ele em pé me vendo dar duas viagens,
imóvel. Para o meu susto, ele pegou as sacolas que restaram, mas as jogou meio
que de qualquer modo no porta-malas enquanto eu arrumava as primeiras.
Quando
terminei de ajeita-las todas, Maurício já estava no carro. Bati a porta da mala
e hesitei por um momento. Eu não tinha certeza se era pra ir com ele. Se era
pra entrar em seu carro e ir jogando conversa fora até a casa. Não sei se ele
entendeu minha incerteza, mas resolvi tomar o fato de que ele não deu a partida
no carro como um ato de fala de que estava me esperando entrar.
Me
dirigir à porta do carona e ela destravou. Entrei, travei o cinto e fiquei
vermelho. Eu sabia que estava. Sentia o rosto ferver e escutaria o barulho de
sua ebulição a qualquer minuto, mas ele ligou o carro e começamos a andar. O ar
frio vinha bem no meu rosto. Fechei meus olhos. Eu quase não conseguia me
sustentar ali dentro com ele. E ainda nem tínhamos saído do mercado.
“Por
que comer sua torrada é o de menos?” Como de costume, estremeci à trovoada de
sua voz. Ele, também como de costume, falou comigo sem me olhar, olhava pro
trânsito, mas nem precisava dessa desculpa.
Fiquei
calado. Não consegui responder. Na verdade, achei que eu não tinha o que
responder. O que eu ia dizer? O que eu tinha pra cobrar dele? O que era meu pra
reclamar? Que ele não se descobria apaixonado por mim e não me vinha beijar a
boca? Que razão eu tinha em exigir dele alguma coisa? Não tinha direito algum
em responder. Não tinha nem o direito de ter dito aquilo. Fiquei quieto. Tudo o
que eu pensava em dizer minha voz se recusava a vir veicular. Ficou lá
trancada. Se rebelando a cada nova tentativa.
Ele
devia estar me odiando. Se corroendo todo por dentro naquele coração orgulhoso.
Não perguntaria uma segunda vez e nem se mostraria contrariado ou interessado
no meu silêncio. Foi, então, que parei de tentar achar o que dizer. Não diria
nada. Que ele lidasse um pouco com a contrariedade. Estava muito acostumado a
me ouvir sempre sim. Me vi um pouco forte naquela raiva momentânea e me fiz
silencioso o resto do caminho, que, graças a Deus, era curto.
Mal
chegamos, tirei o cinto e saí do carro. Eu sabia que ia me arrepender daquela
força toda tão logo ele sumisse da minha vista de novo, mas não podia negar que
estava me agradando daquela sobrancelha dele frisada. Esperei que ele abrisse a
mala e peguei todas as sacolas de uma vez e fui em direção à entrada da cozinha
sem nem olhar pra trás. O que tinha me dado, eu não sei. Sei que voltou minutos
depois quando ele apareceu na cozinha com uma sacola.
“Ficou
no carro.” Disse entregando a minha mãe.
Ele
ficou parado, meio leso, um instante, até que resolveu beber água.
“Brigada,
tá, Maurício.” Minha mãe veio dizendo.
“Por
quê?” A pergunta me escapou antes que eu pudesse contê-la.
“Por
ter ido buscar você com as compras.” Ela respondeu. “Seu João ia, mas Sônia
precisou sair rápido. Eu ia te ligar pra mandar você pegar um táxi, mas ele se
ofereceu pra ir. Brigada, tá, meu filho.” Ela disse pra ele que ficou roxo de
repente, colocou o copo com um baque na pia, fingiu sorrir pra ela e
desapareceu.
Eu
não podia acreditar! Não tinha sido pra economizar o dinheiro do táxi. Aquela
corrida, e acho que qualquer outra, era mixaria pra eles. Ele tinha ido me
fazer aquela pergunta. Posso até imaginar a batalha que teve de travar dentro
de si pra me perguntar num tom tão ameno. Como posso imaginar o ódio que devia
estar corrompendo suas veias porque tinha ficado sem resposta. Ainda mais que
tinha sido desmascarado bem diante dos meus olhos.
Eu
estava até gostando daquilo. Dava certa euforia me sentir com alguma
estratégia. Eu sabia que duraria pouco, porém. Ia chegar uma hora em que ele
latiria mais alto e eu ficaria no canto, de novo, acuado e pronto pra ceder-lhe
o tanto que quisesse. O bom de tudo foi que, pela primeira vez em muito tempo,
parecia que Maurício não era totalmente indiferente a mim. Pelo menos,
incomodado ele estava.
O
jantar era uma invenção de Sônia. Ela queria reintroduzir o filho à juventude
da alta roda carioca. Chamou uns três filhos de amigos dela, com quem Maurício
estivera algumas vezes e alguns, só os que verdadeiramente importavam, dos
colegas da antiga turma de escola dele. Turma esta que virou minha, logo no ano
seguinte à partida de Maurício. O conselho de classe achou de me pular a sexta
série (ou sétimo ano).
Todo
mundo naquela sala sabia bem quem eu era e isso sempre foi o suficiente pra não
chegarem muito perto de mim. Numa escola de ricos, o filho de uma empregada
cuja mensalidade era paga pela patroa da mãe não é, exatamente, muito atraente
para amizades. Ainda que houvesse quem estivesse acima disso, havia o fato de
eu ser considerado esquisito, muito triste e gay demais pra eles.
Estavam
no drink aperitivo quando minha mãe voltou à cozinha dizendo que eu estava
convidado, que o pessoal da escola perguntou por mim e Sônia tinha dito que era
pra eu me juntar a eles.
Os
cretinos tinham feito questão de fingir que eu não existia, exceto quando
queriam rir de mim, durante os longos anos em que fui obrigado a estar com eles
e perguntavam sobre mim e me queriam à mesa? Pra me devorar, talvez. Que se
explodissem! Sério! Mas não tinha como eu ficar escondido na barra do uniforme
que minha mãe usava em ocasiões especiais. Eu tinha que ir até lá, porém,
rápido, já tinha decidido que não ia ter de aguentar.
“Grande
Abel!” Veio um dos que mais me zombavam. Não muito tempo atrás, havia só uns
dois meses. Na verdade, não soube nem o que ele estava fazendo ali. Devia ter
se esquecido da surra que levou no pátio quando Maurício descobriu que era dele
o pé, deixado de propósito, que me fez rolar um lance de escada e levar dois
pontos no supercílio.
“Boa
noite.” Me limitei a dizer sério e até altivo. Não podia escorraçá-lo porque
ele era um convidado e eu, vocês já sabem. Mas nada podia me obrigar a fazer
média com quem tanto já tinha me humilhado. Só havia um que podia fazê-lo o
quanto bem quisesse e agora, ele estava muito envolvido em uma conversa com
Giulia, filha de uma amiga de Sônia, quase tão rica quanto eles. Mas ele perdeu
a atenção dela por um tempo.
“Oi,
Abel!” Giulia chegou a levantar e veio me abraçar. “Quanto tempo! Você vai
jantar com a gente, né?”
“É,
Abel. Veste uma roupa e vem.” Disse Sônia sem se importar em olhar pra mim duas
vezes.
“Adoraria,
mas não posso. Marquei de sair com uns amigos.” Falei tudo num fôlego só. E,
aí, senti os olhos de Maurício queimando o meu rosto.
“Como
se tivesse algum.” Um dos meninos da escola abafou num pigarro e, agora, era o
rosto dele que o olhos de Maurício queimavam.
“Ah,
deixa de disso.” Sônia desmereceu com um gesto de mão. “É só desmarcar. Inventa
uma desculpa. Você está no Rio de Janeiro. Pelo amor de Deus.” E deu uma boa
golada no whisky.
“Não
posso. É aniversário de um deles. Eu tava só terminando de ajudar minha mãe e
já ia me arrumar.”
“Um
chato você.” Sua voz já começava a embargar.
Eu
não fazia nem ideia de pra onde eu ia. Só me deixei seguir minha mentira,
automaticamente, como se fosse verdade. Tomei banho, me arrumei, peguei um
dinheiro na minha gaveta e saí de casa pela cozinha mesmo.
“Pra
onde você vai?” Tinha esquecido completamente da minha mãe.
“Eu
não queria jantar com eles e inventei que ia sair. Agora, tenho que ir.”
“Pra
onde uma hora dessas, meus Deus?”
“Ai,
mãe! Me deixa. Só vou ao shopping. Nada demais.”
Sair
daquela casa foi, de novo, como respirar ar fresco, saindo de uma multidão que
acabou de ser bombardeada com pimenta. Parecia que eu tinha abandonado todo o
peso das minhas costas no portão. Sabia que voltaria e pararia ali para pegá-lo
de volta assim que retornasse, mas, por ora, estava livre. Pela primeira vez na
vida, me vi inteiramente livre, mesmo que por um período curto.
Não
tinha compromisso, horário ou destino. Podia ir para onde quisesse, fazer o que
eu bem entendesse. Bem, nem tanto. Eu só tinha dezessete anos e o dinheiro que
eu tinha pego não era lá essas coisas.
Eu
podia até não saber pra onde ia, mas sabia o que queria fazer: BEBER! Ia ficar
bêbado e esquecer de mim.
Com
alguma sorte me esquecia também de Maurício.
Continua...
Brasil, adorei seu conto, mas pelamord, faz um por dia!!! Ariano que odeia esperar u.u deal with it, muito bem escrito, desenvoltura com os personagens, boas ideias, Subarashi!!!! Marvelous!!!
ResponderEliminarEu também tô amando seu conto.
ResponderEliminarEstou amando teu conto, moço! Por favor, tenta postar um por dia, porque, às vezes, tenho que reler um outro pra poder voltar a entender.
ResponderEliminarMas que história boa, independente de saber que submissão nos dias atuais é algo bem controverso a todo empoderamento conquistado atualmente.
Mas parabéns, belíssimo conto.
Pode postar quando der, só não para de postar. É meu novo "Hobbe". To me vendo na história... enfim. Só continua, já sei qual dia venho aqui ver.
ResponderEliminarConto muito bom. Atualiza lá no CDC lá você parou no segundo capitulo.
ResponderEliminarque conto maravilhooooooooso! Posta mais <3
ResponderEliminarCadê o próximo capítulo?? Tô amando
ResponderEliminarContinua, por favor! Eu estou amaaaaando! ♥️
ResponderEliminarGostei demais do conto... mas kede o resto???? To roendo aki!
ResponderEliminarTô de volta. Cheio de capítulos. Cadê você?
EliminarConto sensacional! Apenas seria melhor se vc conseguisse postar com mais frequencia
ResponderEliminaracabou??
ResponderEliminareu imploro posta a continuação desse hino de conto!!!
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