domingo, 12 de abril de 2020

O Vencedor - Capítulo 23

O Vencedor 

Capítulo 23





Não tenho nem a ousadia de pedir desculpas pelo tanto tempo em silêncio aqui. Também não me permito a pretensão de achar que você ainda está aí, que não se cansou de esperar, me xingando, que não se esqueceu da minha história afogada nas tantas outras que te encantam. Contudo, supondo que você ainda se lembre do endereço deste blog, sem mais nenhuma escusa, eu vou continuar.  

Em 14 de março, minha angústia estava espalhada por todos os lados. Meu quarto, completamente fora de ordem, parecia colecionar folhas de fichário, meias sujas, cuecas reutilizadas, canecas de café ressequidas, copos encrustados, embalagens e pratos. Colônias de mofo. Tudo tão extraordinariamente espalhado que parecia até que cada coisa tivesse sido colocada onde estava com o zelo de um que faz uma obra de arte que quisesse dar conta de ser a perfeita definição da palavra bagunça. Meu cabelo se embolava sujo num coque preso num lápis, minha pele, engordurada, as unhas, enormes e sujas. Olheiras, mau hálito, cecê e carnes de dias presas entre os dentes.  

Sônia havia ligado pra pedir que eu dissesse aos demais empregados que ela não voltaria em março e que, talvez, nem em abril e que eles podiam, com a exceção do jardineiro – ela fez questão de lembrar – continuar de férias até que ela retornasse. Nada disso era novo. Era comum que seus deslumbres e embriaguezes a mantivessem presa à Europa de tempos em tempos.   

E eu, que não queria ver ninguém, falar com ninguém, me permiti faltar às aulas por mais de uma semana e fingia que estavam indo bem, maravilhosamente bem, quando minha mãe ligava. Minha avó parecia estar melhor e tudo o que eu não queria, e nem podia (imagine eu contando tudo pra ela!) era trazer mais problemas pra cabeça da minha mãe, que, por sinal, ultimamente ficava silenciosa por alguns poucos, mas longos para telefonema, segundos de silêncios dos quais voltava reclamando de dor de cabeça.  

“Não é nada.” Dizia. “É só essa rotina de hospital.”  

“Aproveite que está indo tanto em um e vê um médico.”  

“Não sei porquê? Sua tia tá agora mesmo abafando um chazinho de carqueja pra mim. Melhor do que qualquer médico, meu filho.” 

Quanta hipocrisia. Lembro de ter pensando uma vez terminado o telefonema. Eu recomendando que ela buscasse um médico, quando bastava olhar em volta pra ver que quem precisava de um médico era eu. Não exatamente de um da mesma especialidade daquele de que precisava minha mãe, mas, de um jeito ou de outro, um que desses, também, que cuidam da cabeça da gente.  

Era triste o meu estado e isso não era segredo pra mim. O que parecia segredo e ainda o parece, de certa foram, era que havia um modo de sair daquilo. Na verdade, saber que há um modo a gente sempre sabe. Afinal é o que as pessoas gostam de repetir como essas bonecas com botão, que falam, em se deparando com alguém que se encontra como eu me encontrava. O segredo mesmo consta em saber onde está a porta por qual sair, a esquina a qual dobrar pra rumar pra longe...  

Eu, furtivamente, vinha ignorando as furtivas mensagens de Rodolfo. “Amigo, cadê você?”, “Abel, me responde!!!!” e “Tô preocupado, viado!!!”. No dia 13, no entanto, lhe respondi tarde da noite, culpado de tê-lo tragado pr’aquela minha cratera feia: “Tô vivo. Tô bem.” e voltei a ignora-lo e todas as milhões de mensagens que fizeram meu celular vibrar, como se contorcesse feito eu, pelo pouco tempo que durou o último filete de bateria a que se agarrava.  

Deixei de ser logo em seguida. Abraçado pelo esquecimento do sono, quando a força qualquer se esgota, te permitindo a paz da inconsciência 

Meu estômago me pôs pra fora da cama aos roncos aborrecidos, vazio. De pé, eu conseguia sentir o fedor do meu próprio corpo subindo com as moléculas de ar que eu ia quebrando a caminho da cozinha; como se eu apodrecesse ainda vivo.  

Vinha voltando do freezer com uma embalagem de alguma refeição congelada quando joguei a coisa pro alto porque Maurício estava do outro lado do vidro da porta dos fundos. Mas não era ele. Não podia ser. Antes, Rodolfo. 

“Abre essa porta!” Ele ordenou, efusivamente, forçando a maçaneta.  

“O que...?” Hesitei por um momento, atordoado e com vergonha, mas tirei a chave da caixinha de madeira sobre a ilha e fui abrir a porta. Corri ao congelado no chão e pro mais distante possível de Rodolfo. Não queria que ele me sentisse feder.  

“O que tá acontecendo, Abel?”  

Como podia? Eu me lembro de ter pensado na hora, antes de desabar em prantos, me abraçando ao frio da Lasanha Congelada Sadia. Aquele rosto tão recente, com olhos muito tristes, me encarando, encarnando a minha dor. Como podia? Vi meu estado refletido na tristeza de um rosto, que, havia pouco mais de um mês, eu nem sabia que existia, daí despenquei num choro profundo, copioso, aos soluços, de cara feia, muito feia. Soltei um grito longo, seco, voltado pra dentro e levai a mão à boca com os olhos ainda presos na misericórdia que encharcava os olhos de Rodolfo.  

O meu amigo se apressou a me abraçar.  

“Dói muito.” Eu solucei.  

Rodolfo nada disse. Manteve-me abraçado. Intensificou a força do abraço, afagou na nuca; provavelmente já entregue aos meus terríveis odores, nobre e grandioso demais pra se dar a detalhes tão menores. 

A não ser é claro quando se findou o abraço e o assunto se tornara importante haja a vista o deplorável de mim.  

“A senhora precisa de banho. Água correndo. Sabão. Shampoo. Agora, meu anjo.” 

Eu não tinha forças pra tomar banho, mas tinha menos forças ainda pra reagir a um imperativo tão contundente da realidade.  

Esfreguei-me com luvas esfoliantes, precisava daquele afago de mim em mim mesmo. Senti como a me pôr pra funcionar ordenando às células mortas acumuladas que partissem e ordenando ao sangue que se circulasse mais rápido. Esfreguei o couro cabeludo, enxaguei, cinza-esverdeado, e repeti deixando a espuma agir nos fios. Atrás da orelha, ela própria, os cantos do nariz, dentro de umbigo, tudo era mau cheiro de dejeto vivo ainda. Passei as unhas à escovinha. A água me escorria empretecida para o ralo e de repente, eu me via num ritual, crente. Um ritual de libertação à água e sabão.  

Quando da toalha, o peso da pele da pele parecia ter ido embora, sobrando força pra sustentar o que se insistia na alma.  

Aliviado em poucos por cento, então a zero novamente a um relance inevitável dos olhos fundos no espelho. Não pelo estado cadavérico do rosto castigado. Pelo profundo abismo que se abria lá pra dentro dos olhos tristes.  

Escovei os dentes. Fio dental exigia tamanho domínio próprio que eu não tinha.   

À porta do banheiro, o arroz refogando brindou-me as narinas e fez rugir o estômago sôfrego.  

Reconheci na pia da cozinha a louça que em pouco tempo atulhava meu quarto. Envergonhado dos corais nos pratos, canecas e vasilhames, tentei em vão dissuadir Rodolfo a abandonar a tarefa sob promessa de executá-la mais tarde quando recobradas as forças mais profundas.  

“Tomar no seu cu.” Ela respondeu, modesta e carinhosa.  

Eu vestia um roupão e uma cueca limpa que sabia que tinha no fundo do armário, mas que jamais tivera me animado a buscar. A toalha amarrada à cabeça chupando a água dos cabelos.  

“Senta aí. Tá quase pronto.”  

O som da água evaporando no arroz me reconfortava, as borbulhar aromatizado de alho. A forme ardia ansiosa dentro de mim. A lasanha girava descompassada no micro-ondas. Rodolfo terminava a louça, bem terminava o que era possívelo que não precisava ficar de molho no Veja pra desencrostar.  

A bicha me serviu arroz e dividiu a lasanha ao meio. Tirou da geladeira uma jarra de suco, a safada tinha feito até suco.  

“O bebezinho vai comer tudinho.” Sempre tão doce fazendo graça diminuindo a grandeza do que fazia enquanto diminuía o tamanho da destruição que encontrava.  

Rodolfo se serviu também e sentou-se comigo. 

“Eu mandei um milhão de mensagens pro número que eu achei no celular da mãe dele, implorando pra ele falar comigo.”  

Shi.” Ordenou com a mão erguida. “Come. Pelo menos pra comer, deixa ele de lado.” 

“A bonita tem exatamente oito dias pra levantar essa poeira e colocar esse sono em dia. Tirar essa olheira e botar uma roupa bem gatz pra rebolar esse edi no sábado pra comemorar seu aniversário.”  

“Tu jura? Tô até lá já.”  

“Ah, mas tá. Já fiz a lista amiga e convidei aquela sua colega veterana e mais umas pessoas que a senhora é meio desprovida de contatos.” 

Viado, nem viso.” Falei com a boca cheia de lasanha quente, os olhos lacrimejantes. Enchi a boca de suco. Além do mais, meu aniversário é no dia 20, querida. Tá um pouco mal informada.” 

“Não. Não estou. É que na quinta não vai ter nada que preste. E não te dei escolha. Não sou psicóloga, não entendo de nada disso, mas não precisa estudar pra saber que a senhora tá na merda e que não vou deixar ficar assim por mais tempo. Nem sei se esse é o correto a fazer numa situação dessas, mas tudo o que sei é que: “When all else fails and you long to be something better than you are today, I know a place where you can get away...” Cantou. 

“...it’s called dancefloor and here’s what it’s for...” Completei.  

So, come on! Vogue. Let you body move to the music.* Ele arrematou como um advogado diante de uma causa ganha.  

“Tem alguma coisa de sobremesa nessa casa rycah?” Eu ri.  

“Deve ter.” Respondi.  

Tinha sorvete e calda. Tomamos os dois litros ali mesmo.  

Depois nos estiramos no sofá largando a louça. Antes que me desse conta, estava com a cabeça recostada no ombro do meu amigo que me presenteava de um fraterno cafuné

“Precisa desembaraçar isso, hein. Onde tem as coisas?” 

“Deixa eu que pego.”  

Me sentei no chão entre as pernas de Rodolfo, no sofá, com o creme de pentear e a escova nas mãos. Ele começou o ato carinhoso de me recompor a humanidade dos fios neanderthalensis. Como minha mãe muitas vezes antes fizera.   

Você mandou mensagem e ele não falou nada?”  

“Falou.” Meu tronco contorcia a medida em que eu lembrava. ““Aí, na moral, tá feio.” Foi o que ele disse e me bloqueou.” Eu tornei a mão à boca como a tentar abafar meu desespero, mas quando atinei, ia cravando os dentes na pele indolor.  

“Solta!” Ordenou Rodolfo absurdado 

Acordei do transe com a mão ardendo onde pequenas gotas de sangue tentavam se animar a vazar.  

“Abel, não dá.” Disse retomando a lida árdua no desembaraço dos meus cabelos. “Eu sei que tá escuro aí dentro, mas você tem que encontrar um ponto de luz. Eu acho que isso não é nem o que eu devia estar dizendo, acho até que nem devia estar dizendo nada numa situação dessas. Sou ignorante no assunto, mas não consigo ficar assistindo a isso.”  

Como ele que mal me conhecia não podia suportar me ver daquele jeito e eu que era eu desde que me entendi por gente, podia tolerar mais um segundo daquilo.  

“Foda-se, Maurício.” Eu gritei várias vezes como a tentar me fazer convencido pela repetição do mantra. Não adiantou muito, mas aliviou a carga. O poder do “Foda-se.”, inexplicável magia qual Expecto Patronum da vida real.  

“Tá. Eu vou pra essa festa e decido que vou brilhar!” Disse ainda tentando me convencer de que dizia a verdade. 

Ai, arrasou.”  

Desembaraçados os cabelos, Rodolfo e eu acorremos ao desembaraço do meu quarto. As embalagens foram sumindo uma a uma, as roupas podres foram pra seu devido lugar na máquina de lavar, junto das que nem tinham sido usadas desde lavadas por último, mas que se tinham contaminada da imundície das outras e da insalubridade do chão onde foram abandonadas. Os lençóis encardidos foram trocados, o chão varrido, as coisas devolvidas a seus lugares.  

Pinho Sol foi a escolha de Rodolfo que dizia-lhe a cara da limpeza. O quarto se achava íntegro e habitável novamente.  Um ser humano podia ali estar sem precisar lidar com a dura pequenez de sua existência vil e podre.  

Tomamos banho. Emprestei-lhe roupas de menina, bem bucetinha, que eu vinha usando. Ela ficou toda toda desfilando ao som de “Crazy in Love”, nos voltamos ao sofá e assistimos Breakfast at Tiffany’s 

Rodolfo perdeu o dia de aula, mas me fez prometer que eu voltaria na segunda seguinte e pra garantir que eu não faltasse com minha palavra, voltou no domingo e dormiu no chão do meu quarto pra me por pra fora pela manhã.  

No corredor, num intervalo entre aulas, uma Giulia alarmada impediu meu caminho: 

Cadê você, garoto?!”  

“Tô aqui, ué.” Disse forçando um sorriso amistoso.  

“Já to sabendo do sábado, hein. Super na vibe. Vai ser tudo.” Já se indo pelo corredor onde tinha aula.  

A semana passou num piscar de olhos e já que todo mundo estava esperando alguma coisa pro meu sábado à noite, eu decidi que não faria diferente. Havia de esperar também: e tudo que eu queria esperar era estar divinamente linda. Pelo menos, por fora.  
Marquei uma hora num salão top no Fashion Mall e tomei o cartão que Sônia me tinha deixado. Era exatamente o dia do meu aniversário e precisei interromper meus trâmites de beleza pra receber a vídeo conferência da minha mãe com minha família no quarto da minha avó no horário de visitas.  

“Eu queria tanto estar aí, meu filho, com você.”  

“Relaxa, mãe. Tá tudo bem. Eu vou comemorar com uns amigos da faculdade numa festa. Tá tudo bem por aí?”  

A ligação seguiu de amenidades. Minha avó demonstrava intensa recuperação.  

Saí do salão renovado. Os cabelos mais vivos, a pele tratada, as unhas cutiladas e polidas. 

“Bora pro bar?” Rodolfo por mensagem.  

“Bora.” Queria exibir o resultado de uma exaustiva tarde de cuidados. 

Eu fazia dezoito anos e, apesar de sentir minhas pilastras carcomidas e frágeis, eu me achava de pé.  

A coisa toda no bar transcorreu sem eventos que precisem ser contados. A não ser talvez o cupcake com a velinha solitária com que Rodolfo cantou um tímido Parabéns a Você, acompanhado por palminhas quase silenciosas e umas olhadelas de um certo mauricinho chamado Filipe ao ver o produto reluzindo renovado. O resto éramos nós duas bêbadas e uma recém chegada Giulia que, depois de se permitir ficar meramente alegrinha, resolveu era hora de irmos.  

Diferentemente, do mini alfa, ainda que irresponsável por já ter bebido, Júlia, ao som da trilha sonora de O Diário de Bridget Jones baixada no celular de Rodolfo conectado ao carro por um cabo p2, deixou a bicha na porta de casa, em São João de Meriti, de onde voltamos pro outro lado, o rico, com nada além do que JB FM e algumas significativas trocas de olhares que à altura do Rebouças se tornaram insuportáveis.  

“O que foi?” Perguntei.  

“Acho que o direito dessa pergunta é minha?” Ela me olhou de lado atenta ao túnel. 

"Você sumiu da faculdade. Rodolfo, nervoso, perguntando se eu sabia de você... O que tá acontecendo?”  

“Uns dramas aí.”  

“Uns-dramas-aí lê-se Maurício?” Evitei os olhos dela. Antes fixei os olhos para além da janela do seu carro. Nada era fixo e, à velocidade, tudo passava, mas meus olhos continuavam inertes como que a encararem a mesma coisa.  

“Tem alguma coisa estranha entre vocês.” Ela não olhava para mim. “Sei lá, a cena de ciúmes dele naquela festa e também o ódio no rosto dele quanto o pessoal da escola de vocês ficou te zoando... Tem alguma coisa. E agora, que ele não tá aqui e você se escondendo da vida... Não sei. Posso estar errada, mas às vezes minhas deduções estão certas.”  

“Não. Desta vez, não.” Olhei, rapidamente, para ela e me voltei para a janela.  

“Bem. Okay, então. Me desculpa o equívoco.”  

“Não. Você está certa.” Me cansei.  

Talvez me abrir com Giulia, que conhecia Maurício além de meramente através do meu olhar, pudesse me ajudar. Não. Mentira. Eu queria era mais uma chance de poder falar dele. De fazer dele assunto da minha conversa, como se aquilo pudesse trazê-lo pr’ali de algum modo.  

Contei a ela parte das coisas todas. Cuidei de ocultar os detalhes - contei-lhe ainda menos do que havia contato a Rodolfo.  

“Cara, sou amiga dele, gosto muito de Maurício, mas nada disso me parece certo.” 

“Como não? Ele nunca me prometeu nada. Não posso ter nenhuma queixa contra ele.”  

“Não pode?! Você pode ter todas as queixas que quiser. Ele tem responsabilidades pelas suas emoções, Abel. Ele criou um jogo abusivo com você e tirou o time de campo te deixando pra jogar sozinho. Te envolveu inúmeras vezes e foi embora por um motivo infantil.” Ela parou o carro em frente à casa.  

“Todo esse lance de vocês é bem doentio. Ele se prevalece da sua ingenuidade e doçura. Ele tem, sim, responsabilidade.  

“Eu escolhi fazer parte também.” 

“Pois bem. Então, escolha o inverso agora. Escolha sair desse buraco.”  

“Você fala como se fosse fácil. Já esteve nessa situação?”  

“Não. Nunca permiti que nada assim fosse longe.”  

“Ah, quem dera todo esse domínio próprio.” As palavras saiam embebidas em deboche da minha boca. “Se não sabe, não tem o que dizer. Se você é sempre tão forte, não faz a menor ideia do que está falando e não é uma boa conselheira aqui.”  

“Abel, eu só...” 

“Obrigado, Giulia, pela carona. Como você sabe, eu já cheguei. Até mais.”  

“Até sábado!” Declarou enfática.  

“Não sei.”  

Entrei na casa e fui direto à cozinha buscar o que beber. Já estava um tanto tomado pelos efeitos da cerveja no bar e agora sentia que precisa de mais.  

Terminei a noite desmaiando no sofá da sala. Ao meu lado, duas garrafas vazias de um prosecco caro.  

A sexta foi acompanhada de outro porre que resultou num sexo a três com dois garotos que se queriam mais do que a mim, mas que não tinham local. A mim, sobraram as migalhas: chupar o pau do passivo e servir ao gozo do ativo uma vez que o primeiro não aguentou seguir tomando sua rola descomunal.  

Eles foram embora, demonstrando alguma pena do pobre menino rico, sozinho naquela casa e que aceitava qualquer demonstração do que se parecesse com afeto.  

Mais uma vez foi necessário que Rodolfo surgisse pra me fazer sair de casa e ir celebrar um ano de vida que eu não via a menor razão para celebrar.  

Minha condição foi que começássemos a beber já em casa, enquanto nos arrumávamos.  
Rodolfo tinha trazido uns elementos fashionistas que, segundo ele, se faziam imprescindíveis na minha situação. Tudo o que o permiti fazer foi customizar uma blusa minha e me pintar o rosto com sombra neon e acrescentar detalhes de glitter 

E não sei se foi a luz nova que aquela mini montação projetou sobre mim, o efeito do álcool, ou a real necessidade de sair daquela casa o que acabou me animando para, enfim, ir pra tal festa. Claro, levando o que beber no caminho.  

Era uma festa em frente à Praça Tiradentes e havia muita gente cheia de glitter e com os mais variados tipos de looks por lá.  

Encontramos uns amigos de Rodolfo e também três colegas de sala nossos na fila. Bebíamos a vodca que um deles havia trazido, nos revezando na compra de latas de Fanta Laranja que acompanhar.  

Um Uber parou mais ou menos à nossa altura na fila. De dentro, saltou Giulia, num vestidinho de boneca e tênis brutos. 

Ela deu um “boa noite” geral e parou diante de mim me estendendo a mão como quem levanta uma bandeira branca. Eu estava bêbado já e ela de nada tinha culpa. Peguei-lhe a mão firme e pronunciei um pedido de desculpas.  

“Relaxa. Tá tudo em casa. E que brilho todo é esse? Babadeira, bicha!”  

“Obrigada, meu bem.” Joguei meus cabelos, tirando um dos copos nos quais eu bebia e lhe preparando um hi-fi adolescente.  

“Não põe muita vodca!”  

“Agora que tá todo mundo aqui, vamos brindar.” Cerimoniou Rodolfo. “A Princesa Abela Thermopolis de Bragança Bennett Jones!”  

Todos ergueram seus copos descartáveis e bebemos.  

“Uma foto!” Veio Giulia com seu celular.  

Nos reunimos, eu no centro e Giulia fez a selfie. Ela teve o cuidado de perguntar se todos tinham gostado da foto antes de postar e deixou uma bela legenda seguida de um chek-in em Espaço Acústica RJ.  

viadada na fila começou a gritar e se amontoar no canto porque temia derreter a make e virar açúcar quando começou a chuviscar. O céu ia carregado lá no alto e nada de surpreendente, uma vez que meu aniversário abria o outono e quando não chovia no dia, a chuva não se demorava muito para aparecer.  

A fila pareceu andar mais rápido e pra nossa sorte, já estávamos a ser revistados quando o toró rebentou, mas havia muita gente de rímel borrado do lado de dentro mais tarde.  

Não posso dizer, que apesar do inferno geral, eu não me diverti na festa. Era tudo novo demais, lotado demais, bafônico demais pra que eu me importasse com sofrimento. Eu estava bêbado e só fazia dançar e gritar toda e qualque música pop com que a DJ nos brindava.  

Era verdade que a solidão da cabine do banheiro me servia de volta à realidade, como se minha rodante cabeça, fosse a de João Batista numa bandeja, mas eu meio que chacoalhava a dor pra fora e voltava ao meu grupo me dando a mais aquela diva que estremecia as paredes da casa.  

Um menino, bem do gatinho, pintosa feito eu, sorria pra mim de longe, cheio de desejo. Entrei na dele e ia sorrindo de volta. O vi aproximar-se aos poucos, tímido, até que, de frente pra mim, sorriu mais lardo e nos atracamos num beijo intenso. 

Abri os olhos enquanto beijávamos. Não sabia exatamente o porque. Mas olhando de lado com sua boca ainda dentro da minha, descobri o que me fizera abrir os olhos: o fogo dos olhos de Maurício incendiava minha pele purpurinada 

A princípio, não dei importância, já havia visto tantos Maurícios que não eram Maurícios nos últimos dias, e inclusive ali dentro mesmo, que não acreditei, de pronto, que se tratasse do verdadeiro.  

Mas a ardente frieza daqueles olhos era inconfundível. Desta vez, não era uma ilusão do meu desespero. Era o meu próprio desespero materializado, e vidrado, à minha esquerda.  
Afastei o menino, que nada entendeu, tentando ser sutil.  

Continua...  

10 comentários:

  1. Abel, você não tem noção do quanto eu esperei pela continuação desta história.
    Ela me deixa agoniado com a curiosidade de saber o que vai acontecer nos próximos capítulos.
    Por favor não demore a postar a próxima parte.

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  2. Abel, meu querido. Sinceramente, não tenho palavras para te dizer sobre seu sofrimento. Mas, li toda sua história de ontem à tarde para hj. Realmente, vc se colocou vítima da situação mas, Maurício não vale nada. Já passei por algo semelhante, entendo seu sofrimento e sua "mea culpa". Força, meu querido
    Aguargando o desfecho.

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  3. Abel pelo amor de Deus eu preciso dos próximos capítulos, eu comecei a ler ontem e terminei hj. Vei eu fico me perguntando como você suportou isso tudo, eu sofria com você cada capítulo! Por favor não some. Grande beijo

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  4. Você escreve da alma... Acompanhei tudo com os sentimentos escritos...continue por favor!!

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  5. Agora só em 2021. Volto ano que vem pra ver a continuação

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  6. Lindo, intenso, triste é angustiante. Então, pfvr, libera mais um capítulo. Tô lendo em 2021, comecei em 2019.

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  7. 17 de agosto de 2021.
    Lir tudo em um único dia. Conto lindo.
    Continue.

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  8. espero que saía logo a continuação

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  9. Abel, querido! Como jornalista vc tem responsabilidade com seus leitores! Continueee

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  10. Saudades dessa história, queria tanto saber o fim dela, ou pelo menos o que aconteceu

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