O Vencedor
Capítulo 7
Queria poder dizer que eu acordei
ainda com o gosto do gozo de Maurício na minha boca, mas, se serve de consolo,
o olho esquerdo acordou fechado, remelento, como se eu estivesse com
conjuntivite. Como isso me lembrava a noite anterior, não pude conter o sorriso
que me roubou o rosto. Suspirei como uma mocinha apaixonada de José de Alencar
que tivesse recebido um cacho dos cabelos do prometido. Fico pensando em como
ela acordaria se, ao invés do cacho, tivesse recebido pés e porra. Não tão
feliz quanto eu, imagino. Ninguém são se veria feliz desse modo.
Apesar de toda a alegria que me
causava, eu não podia negar a brutalidade da verdade: jamais passaria daquilo.
Jamais deixaria de ser só carne e pele e usufruto. Eu ia sempre ser jogado fora
no instante em que ele gozasse.
“Foda-se.” Eu lembro que pensei.
Lembro também que logo em seguida me dei conta de que ao dizer “foda-se” eu
dizia “foda-se” para mim mesmo, coisa pra qual realmente eu estava pouco me
fodendo.
Eu ali ainda não tinha me
lembrado do mito do girassol, da pobre da Clítio que virou flor, plantada que
ficava a vigiar Apolo dirigindo o carro do sol. Idiota feito eu. E Apolo lá em
cima, nem aí, vivendo sua vida divina.
“Foda-se de novo.” Eu disse
encarando o olho vermelho no espelho. “E foda-se mais e outra vez. Foda-se.
Foda-se. Foda-se.”
Pra que me impedir a humilhação?
De que orgulho eu precisava tomar conta? Eu era só o filho da empregada que
morava de favor. Uma ninfa que ousou se dar a amar um deus.
Eu fui correndo pro banheiro. Lavei
os cabelos que era pra justificar o olho vermelho, caso minha mãe me visse
antes de eu chegar à gaveta da farmácia na cozinha.
“Tá com conjuntivite?” Foi seu
João, que tomava um cafezinho à mesa da cozinha, quem logo me perguntou. Ao
lado dele, um Maurício sem camisa que tomava o seu café da manhã.
“Que olho vermelho é esse?” Minha
mãe tirou os olhos do fogão alarmada pela pergunta do seu João.
“Foi o shampoo, agora.”
Maurício continuou quieto, nem
riu ou me olhou significativamente. Acho que teria sido interação demais comigo
assim logo cedo. Se tivesse reagido de qualquer maneira ao que sabia ser sua
culpa, teria denotado cumplicidade demais da parte dele para comigo. E ele não
estava ali para nada disso.
“Só vou colocar um colírio pra
parar de arder.” Disse já com o frasco de Moura Brasil na mão.
“Onde você se enfiou ontem?”
Minha mãe não sabia o que significava “lavar roupa suja em casa”. Não a culpo.
O nosso conceito de casa era bastante deturpado pra que ela pudesse.
“Eu te disse. Era aniversário do
Matheus.”
“Que Matheus, Abel?”
“Mãe, eu te falei. O Matheus do
curso de francês.” Aí, eu já estava perto o bastante para cutuca-la na barriga
sem que os outros dois pudessem ver.
“Ah, o Matheus, claro.” Ela disse cínica, muito pouco convincente. “Vai tomar café, meu filho.”
“Bem, eu vou indo que tenho que
levar o carro pra vistoria e isso toma tempo.” Seu João se levantou e saiu da
cozinha sem ser notado quase.
“Filho, olha essa panela pra mim?
Preciso ir ajeitar os banheiros.”
“Tá.” Respondi meio que trêmulo.
Assim que minha mãe saiu, o
silêncio tomou conta da cozinha. Eu estava à mesa de frente pra ele, mas não me
atrevia a olhá-lo. Queria falar, queria dizer que tinha gostado muito e queria
de novo sempre que ele quisesse. Eu queria atestar com palavras o tamanho da
humilhação toda. Mas ao invés disso, enchi uma caneca com café e fiquei quieto.
Maurício se levantou. Usava
apenas um short velho de nylon sem cueca, pelo que pude ver. Ele levantou os
braços e se espreguiçou. Os sovacos peludos abertos demoradamente como que
convidando minha língua. O caminho de pelos na barriga e o pau levemente duro
como acontece às vezes quando nos espreguiçamos. Ele o apertou e o desenho se
discerniu perfeito por sobre o tecido. Suspirou descansado e saiu da cozinha
sem nem ter olhado pra mim.
Imagina que você foi muito mau a
vida toda e morreu e foi logo sentenciado ao inferno. Você está lá de boa,
aceitando suas chamas até que chega um anjo de luz e te convida pra um voo em
direção ao céu, onde você vai morar agora, mas, então, num estalar de dedos, a
máscara do anjo cai e ele solta suas mãos e você cai. Cai profundamente de
volta para o fogo.
Pelo menos, sem ele ali, eu podia
comer sem me sentir constrangido, ora por comer da comida que era dele, ora por
comer mesmo, que era coisa de gordo e também uma coisa muito ordinária pra se
fazer diante de uma presença tão soberana.
Apaguei o fogo dos legumes que
minha mãe cozinhava. Sônia gostava de salada de legumes cozidos, mas raramente
acordava para almoçar. Principalmente, quando enchia a cara de whisky. Minha
mãe, porém, fazia conforme ela dizia.
Não vi Maurício pelo resto do
dia, ficou trancado no quarto. E como tudo o que eu encontrava ânimo pra fazer
precisava ter a ver com ele, não fiz nada além de ficar na minha cama, fingindo
que ouvia música.
Eu tinha de fazer algo da minha
vida. Vá lá que eu só tinha dezessete anos ainda, mas o tempo não espera e eu
não podia me dar ao luxo de ficar esperando viver de Maurício ou tentar
acompanhar a vida dele que já era virada pra lua por excelência.
Esse rompante de força e quase
determinação foi embora tão logo quanto veio. Eu sabia bem que não ia fazer
nada. Que não teria forças e ia ficar me debatendo, moído, de não estar onde
ele pudesse me achar facilmente. Eu não ia fazer nada. Não ia ser ninguém a não
ser a sombra triste que se forma em volta da luz dele.
Eu não tinha vontade de ler um
livro, uma revista... Não achava graça na tv ou em filmes. Desliguei até a
música e fiquei deitado olhando pro teto. Me masturbei algumas vezes e
fantasiei que Maurício me amava. Isso eu conseguia fazer.
Quando saí do quarto, no que já
devia ser umas sete da noite, foi só pra sentir o cheiro do perfume caro de
Maurício, o que parecia indicar que ele tivesse saído. Sônia também tinha
saído, minha mãe me disse.
“Onde você foi ontem de verdade?”
“Eu fiquei sentado na estátua do
Drummond.”
“O quê?”
“É. Foi isso. Fiquei sentado e
tomei umas com ele.”
“Você quer ser assaltado? Você
ficou maluco? E quem é esse tal de Matheus?”
“Não existe Matheus nenhum, mãe.
Eu só disse isso como desculpa pra não ficar no jantar, lembra?”
“Você anda muito esquisito,
Abel.”
“Por quê? Por não querer ficar
num jantar com pessoas que me zoaram o ensino médio inteiro?”
“Não é isso. Não sei. E não
começa com essa de ficar bebendo, hein. Espero que isso não vire uma rotina.”
“Não vai virar, mãe. Não sou dos
vícios.”
“Ninguém é até viciar.”
“Fica tranquila.” Meu vício é de
outra natureza. Talvez até pior.
Nós jantamos ali na cozinha o
almoço intocado. Sônia não acordou pra comer e nem quis. Maurício tomou café
tarde. Eu não quis almoçar e minha mãe e seu João comeram algo que tinha
sobrado do jantar.
Lavei a louça e arrumei a
cozinha, depois deitei e fiquei meramente brincando com meus cabelos. Até que
peguei no sono...
E acordei com um cheiro de mijo bêbado curtido se esfregando em
minhas narinas.
Continua...
Por favor, mais dois capítulos.����
ResponderEliminarEu te suplico.
ResponderEliminarPor favor não demora a postar
ResponderEliminarEstou adorando os contos. Ganhou um fã. Espero que consiga ter tempo para postar mais. Estou curioso para saber o que se passa na cabeça no Maurício.
ResponderEliminarBem, aí. Postei mais um só por causa desse pedido. Arrumei uma treta aí pra ficar perto de um celular. Vamos ver por quanto tempo...
ResponderEliminarEu acompanho essa história desde as primeiras postagens no site, amo muito. Posta mais, please.
ResponderEliminarPoxa, valeu. Sei que fiz vocês, que vêm desde o começo, esperarem muito. Prometo fazer o possível pra compensar essa espera.
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